quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Herança

Meu avô conhecia dos ventos que traziam marés de farta felicidade. Dentro das ondas, cortes prateados de pura cintilância viva. Ele sabia costurar sua rede de náilon fino, apesar dos ventos fortes, e guiar o saveiro imenso na brisa dolente. Certa vez, os homens ficaram todos perdidos no labirinto escuro de vento e mistério, com o barulho de água e espumas por cima. Na noite, que já se disfarçara de bordas de mar e de horizonte, o vento frio de cristalino gume lhes cortava os braços e cozinhava calmamente as locas de seus narizes. A chegada da manhã  trouxe o puro horizonte marinho. Quem costurou o retorno na asa mansa do vento foi meu avô.


Pouco me ficou de seu sangue Português de navegar constante. Longe o homem, longe o nome, longe o mar de ventura, lacrimoso e salgado, estou eu, sem fio de náilon, bússola de estrelas ou vento que me leve ao meu favor, estou perdida, no silêncio das ondas mortas, numa rota que é pura deriva.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

E ela ainda está cantando...

Diz a ciência que o mundo tende ao caos. Para além das buzinas e sua fúria, das pernas que passam ligeiras buscando o caminho, das bocas que devoram o tempo como se comessem o pão, estou eu, com meus olhos cheios de calma dúvida.

Grávida de mundo, prenhe de multidão, minha cabeça espera o melhor momento para atravessar e ver o que há na outra beira. Mas a outra beira me aponta o precipício e vozes antigas se lançam dele deixando rastros no ar pesado. É o inferno, diriam.

Não, é a vida.

Esta mesmo que busco comer com uma boca de fome: violenta. Mas que dança torta na minha boca, sobrando nos dentes, e nisso, mordo também a língua e a carne das bochechas. Mas isto também só se sabe depois.

Ainda assim não há sobras a recolher.
Não há acasos
e toda espera é apenas a lenta digestão da véspera.