Um tempo que sempre me apavora, mais pela impossibilidade de antecipação que pelo seu chegar de malas arriadas sobre meus dedos pequenos, é o tempo do só depois. Algo que só Ruy Espinheira conseguiu, com pureza de sofrimento decantado, descrever. Só depois, que é o só agora, mas cortado de uma dor fina, um carrapato inchando cinza enquanto mastiga o sangue já menos vermelho. Adélia disse "Eu tive e perdi". Eu também, Adélia, tive e perdi. Tive uma irmã de lábios grossos e cabelos mais cheios que os meus jamais, jamais! Tive. E mal sabia o que fazer com o ter, ela, flâmula triste, desfez-se. Tive e perdi as tardes mornas à janela namoradeira. O olhar manso dos meninos nas bicicletas. As dunas calmas onde se escondiam todas as possibilidades e meu eterno medo de ali errar. Tive mesas fartas de pernas compridas, nelas o tilintar sôfrego nos almoços, panelas ferventes no fogo aceso, brasa viva no quintal. Tive brigas homéricas com meu irmão, simulações de suicídio, e um amanhecer sempre lindo aos pés da Lagoa, enquanto os homens e mulheres maiores que nós alimentavam a vida com seu olhar de horizonte.
Já tive um olhar, também, com menos horizontes. Já soube esperar. Já cantei bem, dancei melhor. Já pensei em me matar. Já fui a menos feia, a mais bonita, a mais pobre, a mais rica. Já fui mais magra e mais gorda.
Tive uma mãe de saltos altos e cintura fina. Uma vó de mãos cruéis que não sabia cozinhar. Um pai que me ensinou a ouvir música e sentir o mundo.
Isso tudo eu tive. Não tenho mais. O tempo faz fenecer até as flores mais severas: umas morrem despetaladas, outras murcham sem motivo algum, outras morrem de sede, ou afogadas. Eu mesma já as matei às tantas. Mas, se me lembro delas neste instante já fugidio é porque mesmo destroçadas, no ar, perdura o seu perfume.