segunda-feira, 23 de março de 2009

Do risco como possibilidade




Periodicamente pago a uma ouvinte para ser olhos, ouvidos e boca silente e miúda diante de mim, soltando cá e lá, mugidos longos e perguntas que, apenas, querem que eu continue a falar. Cada um dá a esta figura o nome que quiser: eu a apelidei de D. Benta.


D. Benta, sem uma só palavra, conversa comigo tão profundamente, que sou eu, espelhada nela, num negativo necessário e estranho, eu falo, ela ouve e eu me compreendo. Como se pudesse, a cada dia, devorar a mim mesma - silenciosa, esfaimada, mas educada e temerosa de enrolar os pés nos longos cabelos das etiquetas. Escrevo contornos de mim, deitada numa areia pesada e úmida, desenho meu nome com o corpo, sem medo da onda ligeira que possa logo suplantá-lo.

Hoje o assunto, como sempre, foram os afetos.

Lembrei-me de uma profunda incapacidade: a de manter amigos.
Tenho uma pessoa querida que certa vez me disse: "Mais de cinco pessoas, para mim, é multidão." Já eu, não. Adoro a multidão. Ando pelo shopping, vou a festas, brinco carnaval. Sou capaz de hipnotizar uma plateia estranha com um riso longo que aprendi nas novelas. Mas, para ser meu amigo, mesmo, haja insistência.
Tudo, como sempre, é culpa da mãe e da infância. Pouparei a mãe.

Culpo Renata, uma menina de cabelos pretos, longos, finos, e já sensual do alto da quinta série primária. Renata, a miserável, me escolheu para ser sua inimiga definitiva. Ria de mim e de meus cabelos sempre desalinhados. Ria de minhas merendas. Desviava caminhos para não estar camigo. Impedia que eu passasse, caso assim quisesse fazer. Renata era meu inferno.

Um dia, descobri que ela perdera os pais de uma maneira deliciosamente trágica: riquíssimos que eram, o casal entrou no carro da família na fazenda, certa vez, e foram, ambos, picados por uma cobra venenosa.
Ainda sinto uma felicidade pesada no peito por saber que ela não tinha nem pai, nem mãe. Ela era só. Entretanto, a rígida moral cristã me roubou a chance do ódio e do mal-querer. Como já disse aqui, fui criada para o amor. E amar, muitas vezes, é mais doloroso e sem retorno que odiar...Sabendo de informação tão fortemente privilegiada, eu poderia dizer a todos, responder aos apelidos, aos olhares, à chacota pelas mínimas coisas, mas, Maria estava ali, com seus olhos grandes sobre mim. O outro, morrera na cruz. E, segundo Irmã Ana Virgínia, o pecado leva ao inferno. E o inferno devia doer mais que a solidão nos cantos azulejados das Sacramentinas.

Renata me roubou para sempre a chance do risco. No nome maldito, ela renasce e reencena-se no corpo do mais gentil camarada.

Anos depois, vi Renata num shopping de Salvador. Havia parido já três vezes, seu corpo decaíra enormemente, as crianças mal-educadas lhe zuniam os ouvidos e seu olhar perdido denunciava uma dor opaca, um sem-remédio, uma estranhez.

Mas, ainda hoje, quando me lembro dela, a curva descendente da escada rolante desaparece e ela se põe, atroz, na minha frente, e, para chegar ao mundo inteiro que rebrilha por trás dela, tenho que, mais uma vez, dar a volta.





Imagem by: http://www.flickr.com/photos/jam343/1703693/ -jam343

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