Num filme que eu pudesse digirir, roteirizar, editar, arte-finalizar, enfim, que estivesse sob meu absoluto poder eu estaria, projetada numa imensa tela, bem maior do que me sinto. Meus cabelos se arrastariam, encaracolados, pelas costas que, naquela personagem tão bem escrita, seriam esguias. Eu não teria medo. Eu teria mais altura, seria mais magra, meus dedos seriam mais longos e minhas palavras mais certeiras. Não precisaria de óculos, o mundo me viria todo aos olhos, num aluvião de ser e sua presença inundaria a minha visão. Ainda assim, saberia, tal como hoje sei fazer dos pães, com que ele coubesse pequeno em minha boca. Eu o mastigaria com meus dentes que, naquela história, jamais usaram aparelhos, e as palavras que eu diria sempre bateriam firmes, como um afago ou um tapa bem disferido. E eu não teria medo, nenhum.
Meu sexo seria uma flor perfumosa, que contaminaria com seu furor e beleza todo o meu corpo. Eu caminharia segura, jamais vacilaria, e seria mais amada, mais amada e mais amada. Como eu não teria mais medo, um amor violento devassaria toda a terra, vazando de pedras brutas o asfalto. E eu seria só minha e talvez assim pudesse oferecer o doce de meu sorriso ao mundo desencantado. Eu não teria medo. O mundo não me diria não. A porta estaria sempre aberta e eu, sempre livre de estar presa, pelo lado de dentro. Não haveria atrasos ou estações de metrô onde as pessoas se despedissem do que delas guardaram no olhar do outro. Não haveria morte alguma. As dores só para que, quando cessassem elas de nos morder por dentro, pudéssemos viver naquela fatia ínfima de corpo, o milagre da cura, o silêncio da saúde, e a ausência absoluta de qualquer sofrimento. E aí, já ninguém teria medo.
Eu poderia me mostrar inteira a todos. Poderia dizer sempre a verdade, ou mentir como uma criança quando descobre a mentira como uma mágica. Eu poderia me livrar dos nilimentos, eu poderia conversar com os que falam, não pagaria pelos que só me escutam. Eu teria um mundo inteiro em plena concórdia. Eu aceitaria. Eu seria aceita. Não precisaria afiar diuturnamente o aço de minhas palavras. Não sofreria por usá-las, ou por não usá-las. E eu não teria medo.
Um eu assim, como um descampado de pura felicidade, para Freud, seria como a morte. E, em sendo assim, eu teria medo.
Preciso mesmo de um mundo que me machuque, me tranque do lado de fora, me silencie, me diga palavras perigosas, me meta um medo violento e destruidor. Preciso de pessoas a quem eu não consiga responder, preciso do gume cego de minhas palavras, preciso de minha inocência que se converte num precipício de onde me atiram. Preciso ter medo. Desesperadamente. Preciso não saber. Não por um motivo iluminado qualquer, por uma resposta que eu encontre fácil no horóscopo do dia, ou no biscoito da sorte chinês.
Preciso do medo por que ele me afia como a uma faca, ele me oferece, onde há só falta e escuro, uma luz que lampeja incerta, mas que eu prefiro chamar de vida.
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