quarta-feira, 17 de março de 2010

Ir

                                    LCDias, Imagem Pública



Arrumar as malas. Comprar bilhetes. Entrar num taxi, avião, num ônibus, num trem solar e ir,definitiva, para longe. Ir é também não estar. Reconhecer o ficar como um falo triste. Ir é não se encontrar nas ruas, não gostar das pessoas, não refletir sobre o caminhar macio pela estrada aberta. Quando se converte em desejo só, ir é lançar um olhar invejoso sobre o vento que sacode o mundo e vai. Odiar a estrada e as nuvens, chão outro onde planam os grandes aviões: mais pesados que você e que, inda assim, voam. Ser, estar, ficar, permanecer e continuar, principalmente este último, assassino das possibilidades, todos são verbos de ligação com a infelicidade. Uma porta aberta que não dá saída, um blues redundantemente triste como trilha sonora do mundo, um não reconhecer as pessoas e não gostar delas, porque elas podem ir, e você não.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Cecília Meireles

1

Não perguntavam por mim,

mas deram por minha falta.

Na trama da minha ausência,

inventaram tela falsa.


Como eu andava tão longe,

numa aventura tão larga,

entregue à metamorfose

do tempo fluido das águas;

como descera sozinho

os degraus da espuma clara,

e o meu corpo era silêncio

e era mistério minha alma -

- cantou-se a fábula incerta,

segunda a linguagem da harpa:

mas a música é uma selva

de sal e areia na praia,

um arabesco de cinza

que ao vento do mar se apaga.


E o meu caminho começa

nessa franja solitária,

no limite sem vestígio,

na translúcida muralha

que opõem o sonho vivido

e a vida apenas sonhada.


(Canções. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2005, p. 147)