domingo, 29 de março de 2009

A Henrique Se há aí rua de frio chão, noite morta e lua escura, há aqui um jardim desolado de flores desabridas, um sol tenso, carcomendo as bordas dos dias, e estes passam equilibrados numa corda fina que apenas tangencia a sua ausência. Os ponteiros obsedados não enxergam os trilhos por onde passam as horas, esquecidos, descomem o tempo e o sol que chega anuncia um novo que se repete: longe, o tempo (este triste que marca os dias) é senil. Há sempre olhos de não ver e bocas enormes de dentes só lâmina talhando a paisagem e narrando o mundo que à volta corre. Vejo as pessoas como num filme estranho e antigo, cinema quase mudo, personagens inconsúteis, e, em estando ali, vacilo, entre o ouvido que te escuta ao telefone, e a falta de seu braço na minha cintura em toda a noite parda em que as estrelas não vêm. Amainando tudo o que flutua e fenece, há o rio, o mar, o vento alegre e o meu amor, que rebrilha à beira do tempo e trabalha, com as mãos aflitas, no conserto dos relógios e na vivência das horas. Queridos leitores, Aos que não entenderem a postagem acessem:http://naugrafias.blogspot.com/

A Henrique

Se há aí rua de frio chão, noite morta e lua escura, há aqui um jardim desolado de flores desabridas, um sol tenso, carcomendo as bordas dos dias, e estes passam equilibrados numa corda fina que apenas tangencia a sua ausência. Os ponteiros obsedados não enxergam os trilhos por onde passam as horas, esquecidos, descomem o tempo e o sol que chega anuncia um novo que se repete: longe, o tempo (este triste que marca os dias) é senil.

Há sempre olhos de não ver e bocas enormes de dentes só lâmina talhando a paisagem e narrando o mundo que à volta corre. Vejo as pessoas como num filme estranho e antigo, cinema quase mudo, personagens inconsúteis, e, em estando ali, vacilo, entre o ouvido que te escuta ao telefone, e a falta de seu braço na minha cintura em toda a noite parda em que as estrelas não vêm.

Amainando tudo o que flutua e fenece, há o rio, o mar, o vento alegre e o meu amor, que rebrilha à beira do tempo e trabalha, com as mãos aflitas, no conserto dos relógios e na vivência das horas.
Queridos leitores,
Aos que não entenderem a postagem acessem:http://naugrafias.blogspot.com/

segunda-feira, 23 de março de 2009

Do risco como possibilidade




Periodicamente pago a uma ouvinte para ser olhos, ouvidos e boca silente e miúda diante de mim, soltando cá e lá, mugidos longos e perguntas que, apenas, querem que eu continue a falar. Cada um dá a esta figura o nome que quiser: eu a apelidei de D. Benta.


D. Benta, sem uma só palavra, conversa comigo tão profundamente, que sou eu, espelhada nela, num negativo necessário e estranho, eu falo, ela ouve e eu me compreendo. Como se pudesse, a cada dia, devorar a mim mesma - silenciosa, esfaimada, mas educada e temerosa de enrolar os pés nos longos cabelos das etiquetas. Escrevo contornos de mim, deitada numa areia pesada e úmida, desenho meu nome com o corpo, sem medo da onda ligeira que possa logo suplantá-lo.

Hoje o assunto, como sempre, foram os afetos.

Lembrei-me de uma profunda incapacidade: a de manter amigos.
Tenho uma pessoa querida que certa vez me disse: "Mais de cinco pessoas, para mim, é multidão." Já eu, não. Adoro a multidão. Ando pelo shopping, vou a festas, brinco carnaval. Sou capaz de hipnotizar uma plateia estranha com um riso longo que aprendi nas novelas. Mas, para ser meu amigo, mesmo, haja insistência.
Tudo, como sempre, é culpa da mãe e da infância. Pouparei a mãe.

Culpo Renata, uma menina de cabelos pretos, longos, finos, e já sensual do alto da quinta série primária. Renata, a miserável, me escolheu para ser sua inimiga definitiva. Ria de mim e de meus cabelos sempre desalinhados. Ria de minhas merendas. Desviava caminhos para não estar camigo. Impedia que eu passasse, caso assim quisesse fazer. Renata era meu inferno.

Um dia, descobri que ela perdera os pais de uma maneira deliciosamente trágica: riquíssimos que eram, o casal entrou no carro da família na fazenda, certa vez, e foram, ambos, picados por uma cobra venenosa.
Ainda sinto uma felicidade pesada no peito por saber que ela não tinha nem pai, nem mãe. Ela era só. Entretanto, a rígida moral cristã me roubou a chance do ódio e do mal-querer. Como já disse aqui, fui criada para o amor. E amar, muitas vezes, é mais doloroso e sem retorno que odiar...Sabendo de informação tão fortemente privilegiada, eu poderia dizer a todos, responder aos apelidos, aos olhares, à chacota pelas mínimas coisas, mas, Maria estava ali, com seus olhos grandes sobre mim. O outro, morrera na cruz. E, segundo Irmã Ana Virgínia, o pecado leva ao inferno. E o inferno devia doer mais que a solidão nos cantos azulejados das Sacramentinas.

Renata me roubou para sempre a chance do risco. No nome maldito, ela renasce e reencena-se no corpo do mais gentil camarada.

Anos depois, vi Renata num shopping de Salvador. Havia parido já três vezes, seu corpo decaíra enormemente, as crianças mal-educadas lhe zuniam os ouvidos e seu olhar perdido denunciava uma dor opaca, um sem-remédio, uma estranhez.

Mas, ainda hoje, quando me lembro dela, a curva descendente da escada rolante desaparece e ela se põe, atroz, na minha frente, e, para chegar ao mundo inteiro que rebrilha por trás dela, tenho que, mais uma vez, dar a volta.





Imagem by: http://www.flickr.com/photos/jam343/1703693/ -jam343

sábado, 14 de março de 2009

Do infinito feminino



Para Eliana Mara, Ana Cládia Pantoja e Claudete Weiss

Estudei em colégio católico. Isso me fez arisca, desconfiada. Mas também me ensinou a ser um ser feito para o amor, fiel, o mais possível, ao mandamento maior: Amar ao próximo como a si mesmo. Isso me enfraquece, às vezes, as armas para o ataque, me faz juntar ofensas e raivas no fundo lamacento do rio que sou eu. Mas, isso também me premiou com um coração puro, de amor caudaloso e profundo. Um coração que ama, verdadeiramente, o outro, num a priori que se espanta com o eventual mal amor recebido...

Dito isto, informo: amo a três mulheres. Já amei mais outras muitas, mas hoje, meu amor se deposita sobre o ventre de três mulheres que merecem o meu amor, hoje, mais que as outras.

A primeira delas se queimou no próprio fogo. Bravio que é o mar que inconstante se revira dentro de si, devorando pedras, lambendo – furioso – areias, cheirando a sangue de peixes e naufrágios, mar que retém tudo e nada entrega, mar que engole macio o presente perfumado e o lixo atiçado a suas ondas delicadas. A água verteu-se em brasa, e, viva, devorou seu ventre sempre prenhe de estrelas. Mas, para além da pele aberta em flancos dolorosos, está um útero vivo, rebrilhante, de onde nascem algas verdes que acarinham as pedras, águas-vivas que voam nas espumas intangíveis, há poesia, no corpo de Mara, a marinha, que sempre chamei assim, vez muita em segredo, como se falasse de Yemanjá, a Mãe de todos os Orixás.

Recolho a outra mulher do canto de um afeto doído. Roendo, obtusa, uma dor, uma perda. Lambendo feridas, vivendo a ausência de um amado – quando olho esta dor tão desamparada, tenho medo, menos pelo amado, que não voltará desta longa viagem, mas, infantilmente, por todas as outras mulheres que se vêem refletidas neste rosto já brando de dor, inclusive por mim. Estes olhos eclipsados para o mundo que – insensível – corre à sua volta, um dia voltarão a derramar-se sobre nós fazendo, milagrosamente, rebentarem nos nossos lábios sorrisos, numa primavera de flores rubras.

A outra, prepara uma filha num ventre cheio, traz ao mundo uma irmã, uma igual, outra de nós, que nascerá miúda e, ainda que pequena atravesse a vida, marcará, como todas nós, no chão, na pele, no sangue a escrita do corpo feminino, sua travessia, sempre tão parecida e única. A mãe, continuadora de todas e de todos, tem medo da dor, teme que seu corpo esguio e delicado se modifique. Há, entretanto, no cerne deste afeto um traço já indelével: nasce uma mulher. E, para todas nós, o mundo já não será o mesmo.

Foto By Irineu Fa