Na casa grande, mal-dividida e sempre em construção de Nova Brasília de Itapuã, os tristes festejos da Semana Santa eram atravessados por uma ritualística profana profundamente sagrada.
Na sexta-feira, quando o silêncio retumbava cego confrontando-se com as paredes de casa, a vida se dava em passos pequenos, as cores mornas ornavam os corpos com roupas velhas, já surradas; a televisão, independentemente de sua programação, naquele dia estava escanteada, gestos brandos, fala baixa, nada de ligar a radiola ou encher a manilha, afinal, a chuva e as cores cinzas pelo céu também compunham o ritual da tristeza. A cozinha, entretanto, pulsava nas cores douradas do dendê e no som do coco seco quebrado no cimento duro para, mais tarde, triturado, regar a moqueca de peixe com caramuru (espécie de cobra d’água pescada por painho nas locas das pedras da praia de Itapuã). No prato, sempre fundo, o arroz branco e bem temperado com alho era banhado pelo caldo grosso do feijão de leite, que escorria nodoso debaixo da moqueca fumegante. Sobre eles, a farinha ajudava os dedos rápidos a pilar o bolo de pirão devorado com sofreguidão das mãos sempre limpas de mainha.
Mas nada disso acontecia antes do outro ritual, um que começava sempre com uma ligação para vovó, para minhas tias e perdurava durante toda a manhã, quando as ligações dos familiares rebentavam em lágrimas e pedidos sinceros de desculpas: sexta-feira santa é o dia do perdão. Não se briga, não se diz palavrão e quem xinga a mãe vira cavala... E aqui ressoa a voz da narradora da história da menina que destratou a mãe e virou cavala, não égua, cavala, gritando, enquanto voava por cima da casa: “cavala, cavala, cavala!”.
Quanto aos xingamentos aos pais, me parecia, estavam liberados.
Após o almoço o silêncio do filme bíblico assistido no escuro da sala era violado apenas pelo pagode sujo dos bêbados da rua, que atiçavam suas vozes desafinadas contra as janelas e portas: todas fechadas.
O sábado de aleluia despertava brilhante, de boca em boca deslizava o burburinho sobre a queima do Judas de Seu Zuza, o dono da padaria: o rico, dentre os pobres. Aguardávamos a queima da noite roendo os restos a moqueca da véspera, a esta altura mais gostosa, e já ouvindo ao longe algum som, algum riso.
À noite, painho subia conosco a rua de ladeira íngreme, no meio, uma coluna de madeira sustentava o Judas. Num dado ano ele foi batizado de Fernando J. , nome de um péssimo prefeito de Salvador. Havia, acima da boca riscada com tinta acrílica vermelha (tomada emprestada na casa de Tonho, fofoqueiro-mor e pintor do bairro), um bigode ralo que, plantado no rosto pálido feito com uma camisa velha, fazia conjunto com os óculos e a imitação de um paletó marrom, quase preto.
Saíamos alegres para ver o Judas. Antes da queima, todos admiravam o sujeito, contavam histórias escabrosas sobre sua maldade e botavam reparo sobre com quem da comunidade o tal se parecia. Era uma catarse coletiva: os homens davam pauladas nas pernas do Judas e nós, crianças, podíamos atiçar pedras nele sem medo, pois ali a vingança era a tônica, parecia que ali o que se queimava era o Judas cotidiano de cada um.
Quando finalmente se tocava o fogo e estouravam os fogos presos às mãos, cabeça e enfiados no furico do Judas, as moças maiores aproveitavam a distração dos pais e corriam para os becos para um namoro sôfrego, e desregrado, já que ali era o espaço da redenção universal e os beijos, mãos e roçar de sexos que ali se davam jamais resultariam num filho, pois que, ali, todo pecado estava automaticamente perdoado: fora já eleito o primordial pecador.
Depois, na leitura do testamento de Judas, quando o espólio feio e pobre era distribuído pela vizinhança, as mulheres que não trabalhavam de dia, também chamadas pelas que trabalhavam (de maneira absolutamente politicamente incorreta) de “nigrinhas” (ainda que não fossem negras) cheias de si, soltavam grandes e finos urros, batiam nas coxas grossas e, a cada batida, os seios fartos desabrigados de sutiã balançavam ante os olhos dos pais de família, que, certamente, fariam hora-extra ali na noite de domingo de Páscoa...
Depois, redimidos todos, lavados e salvos, retomávamos as brigas, os sons, os trabalhadores, possíveis bêbados do sábado, iam de olhos vermelhos ladeira abaixo buscar o ônibus das cinco e meia.
E o mundo se entregava a nós todos, limpo e imaculado.
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