Meu irmão sempre foi uma espécie bruta. Um afeto cheio de pontas a furar o mundo.
Quando pequeno, levantava saias das freiras, lhes atiçava água, brigava feito um touro miúdo. Comigo, por outro lado, sempre foi do amor mais puro. Do amor com sua dobra mais vincada, já quase espontânea: a perversidade.
Para além das brigas, da destruição recíproca de brinquedos no 26 de dezembro e de minhas sucessivas simulações de suicídio, comumente por enforcamento, éramos amigos e ele era um companheiro fidelíssimo das aventuras na casa grande e solitária de adultos: criávamos formigas em garrafas de Run Montilla, jogávamos gude, empinávamos arraias no céu branco das dunas, hoje, derrotadas e cinzas.
Vivíamos nosso amor profundamente, rebentando, às vezes, em tapas e lágrimas logo apaziguadas.
Numa das inúmeras tardes em que nossos gritos e brincadeiras retumbavam nos corredores da casa, resolvemos comer cachorro quente. Tudo certo, não fosse a nossa trôpega compreensão do que seria tal iguaria.
Unimo-nos ante a grande assadeira de alumínio com pimenta do reino, cebolas, extrato de tomate e tudo o mais que alcançamos na geladeira. O ingrediente mais importante, no entanto, estava na rua: uma ninhada inteira de pequenos vira-latas recém nascidos, que retiramos dos peitos da cachorra - que os trocara, certamente, por um pedaço de pão seco.
(A que extremidades de amor pode nos levar a fome?)
Enfiados nos temperos, ganindo com sal e pimenta aos olhos, os animaizinhos, desesperados, tentavam sair de nossas garras inocentes. Para nós, nada parecia estranho: tínhamos fome, e eles ali estavam era mesmo para se comer.
Postos no forno, sorte deles: não sabíamos acender as chamas. Ali ficaram até o esquecimento, sempre ganindo, e sempre crus ainda.
Eles nunca maturaram o bastante para os nossos dentes famélicos.
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