quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Aniversário

"No tempo em que comemoravam o dia de meus anos
eu era feliz e ninguém estava morto"
Álvaro de Campos


Tenho alimentado afetos com a parte boa de minhas entranhas,
a parte que não sangra tanto,
que não se avermelha em dobras.

Tenho tentado.

E que trabalho pesado este de tentar.
Tenho atendido telefonemas no meio da madrugada
como se salvasse suicidas,
corro andares ofegante de meu respiro
para evitar males que desconheço,
e o amor não cessa de me impingir sua presença dolorosa.

Já o expulsei de casa muitas vezes
e ele se esconde no dormente das portas,
o amor persiste e o sol escalavra minha pele fina
dentro da beleza de cada dia.

Tenho alimentado o amor com dedos protegidos de coragem e fé.
Mas seus dentes são tão afiados
que me ferem no côncavo das cutículas,
eles me lanham profundo,
e o amor, em mim, não cessa.

Tenho medo desta força que não me perdoa
nem me salva.

O amor tem me feito sangrar dos poros às entranhas,
depois,
como um perverso,
lambe minhas cicatrizes.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Sobre o Tempo

Para Ailton Pinheiro

Se este vento persistir ainda alguns verões
e a flama acesa ainda banhar a mesa
e dançar nas paredes com suas sombras luminosas,
teremos pão. Teremos corpo,
e algo de um silêncio que não nos corte muito fundo.
Teremos a lâmina com seu fio imperfeito tangendo os tempos.

Em persistindo o vento sobrelevando as estações
Ainda serão seus cabelos que lamberão minha virilha
e terei seus olhos fechados me tateando no ar.

Em persistindo,
para além da chuva imensa e do acre que devora o verão
esta alegria descortinada e estes olhos de lágrima e brisa,
mais seremos um para o outro,
e estaremos mergulhados neste entreentranhas que,
quando venta,
somos nós.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Vigília

Como seria enterrar um pai?

Ter seu falo morto balouçando sobre o corpo grosso.
Seus pés firmados no sem-fim,
Seus dedos bebendo das estrelas,
Suas mãos abrigando o silêncio do peito,
escondendo,
como que temerosas,
o estômago inútil.
Seus olhos abertos para si,
num mergulho profundo no nenhum,
enxergando o inominado?

Como seria enterrar um pai
com estas minhas mãos de Antígona?
Como seria o meu sepulcro, atrás de uma pedra?
Ser engolida por uma caverna?

Como seria (eu mesma) morrer?
A resposta brilha simples numa carne sem mistérios:

Seria,
e certamente seria,
como enterrar o meu pai.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Orisa didê

Arranca as percatas de seu cavalo
e nele galopa com os pés no chão.
Solta um grito que se espeta no alto
e,
repetido,
saúda a terra com a majestade de sua presença.

Dança sem a calma das horas,
pois seus braços se erguem para fora do tempo.

Caminha com sua carne de mito
e, quando vai, não parte.
Apenas se banha em seu próprio mistério.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O caso do Vestido


De tempo e traça meu vestido me guarda.”
                                 Adélia Prado

Meu corpo não respeita as estações.
Chove grosso em cada dobra da cidade
E eu trago comigo um vestido de verão intempestivo.
 

Meu corpo não cede e, vivo, arde no ligeiro das rendas,
nas maresias que lambem o ar.
Meu corpo não cede.

E o vestido que me desveste neste calor temporão
é todo bordado na minha pele:
por dentro.

Freudiana II

Segurar uma mãe na unha!
Ou nos fios da telefônica
       - que filtram sua voz no vazio.

Prender a mãe,
escalar suas pernas,
premir seu seio macio.

Comer do corpo da mãe,
lamber seu regaço.

Devorar a mãe na ausência
nos fios de seus cabelos,
no perfume que colore o ar.

Devorar a carne da mãe sanando,
com mãos urgentes,
a fome de todos os tempos.

O desamparo de todos os filhos

quarta-feira, 8 de agosto de 2012


POEMINHAS DE AMOR SEM ENFEITE NENHUM
                                           Para A.P. 

Do despertar

Ele acorda sem dar uma só palavra:
O primeiro caminho de voz é para o Orixá.
E eu fico posta na cama, tremendamente humana,
enquanto meu corpo o espera sem calma.



Cotidianos

Ele tomou para si minha mania de planos e listas.
Assim, enquanto eu varo madrugadas
destrançando os fios de seus cabelos
e bêbada do cheiro de sua pele,
ele rascunha no ar o roteiro de nossa felicidade.



Medo

Quando o dia está muito escuro,
e chove em cada dobra do mundo.
Ele abraça a minha mão.



Segredos

O que partilhamos, multiplicando estrelas no nosso céu,
não nos divide.



Beleza

Meu homem é muito bonito: seu corpo é negro e esguio.
Seus cabelos perfumosos dançam no seu dorso largo.
E ainda há os olhos, e sua boca castanha e absoluta.

Mas, sob o manto de toda a beleza,
Há uma camada de boniteza
Que só eu conheço:
por que ele mora em mim.       



Sorriso

Algumas flores só os meus olhos recolhem.



Primaveras no lençol

Trago flores nos cabelos, dependuradas nas roupas, tatuadas no corpo.
Mas a flor mais delicada,
que guardo sob algodões e sedas,
 só desbrocha nos lábios de meu bem.


terça-feira, 24 de julho de 2012

Um poema em seu nome



             Para Ailton Pinheiro Júnior
                     
Como chamar este algo
que se dobra na dobra de sua orelha,
e deixa minhas noites insones
enquanto navegamos?

Seu cheiro que me lambe as narinas,
e mora no tecido fino destes travesseiros
onde dança sua juba domada
como um leão apaziguado em sua morada.

Este algo que dorme no nosso silêncio,
que se move no breu de nossos desejos,
algo que se exala na sua presença
que ilumina os dias e ofusca o sol?

Como se chama?

Como chamar este dia brando que se ergue?

Este gesto, esta voz que canta maresias em meu corpo?

Não há palavra que abrigue
este mundo delicado em que moramos:
qualquer nome cede ao vazio,
na fibra fina de sua presença.


quarta-feira, 23 de maio de 2012

Inominado



Lívia Natália

Algo do que ainda dói é impartilhável.
A ferida se aprofunda escalavrando os meus véus,
a dor me descobre inteira, nos meus guardados mais femininos,
e mais humanos.

Eu choro frágil, e ando pelas ruas de olhos inchados.
Mas ninguém percebe, continuo tendo pés de bailarina,
e tudo que sangra se esconde sob as cores outras com que desfilo.

Vivo com um silêncio desconsolado que mora nas dobras de meu cabelo,
Dança nos meus vestidos, nos vincos de minhas mãos.
E ninguém percebe esta ferida que sangra pra dentro.
Apesar da cicatriz.

domingo, 18 de março de 2012

Freudiana


No mais fundo dos homens que amo
há meu pai, com sua carne de maresias.
Ele se desenha na pele dos meus homens
como o mar inscreve, no peixe, as escamas.

(Todo corpo em que derivo absorta
tem algo de sua voz pedregosa.)

Nas peles negras em que me banho
flutua sua existência de maré:
prenhe de naufrágios.

Aos pés destes timoneiros delicados
que pensam singrar minhas águas
sou a kianda-sereia,
um coral espelhado,
sou a ostra que se desmora em silêncio.

Sou a água eternamente translúcida.
Precipício denso de onde estes peixes bebem
- apenas -
um silêncio delicado.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Canto para Antonio

Relendo o livro de Ângela Vilma, "Poemas para Antonio", não consegui resistir e escrevi o meu poema para Antonio:


Canto para Antonio,

                        Para Ângela Vilma

Eu te amo, Antonio, e a sombra de seu nome faz rebentar as sutilezas.
Nada silencia na primavera bravia que se desperta nos meus dentes,

E pássaros voam famintos em busca de alguma luz.
 

Eu te amo, Antonio, e os vincos de seu rosto lambem minhas madrugadas.
A lua se deita nos mares, a água se tinge de negro

e tudo resvala no cobalto das maresias.


Eu te amo Antonio, e me mergulho nos poros vermelhos de tua língua,
Me embrenho nas matas de seus cabelos crespos,

Caçando as esperas caracoladas de sua demora.


Eu te amo, Antonio,
e nada apazigua esta sede que é a tua véspera.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Do desejo

Porque há desejo em mim
tudo é cintilância
        Hilda Hilst

Alguns poemas não podem ser escritos.
Posto que os escrevo com a tinta da vida,
com o sangue dos dias,
e não posso sangrar certos mares.

Resta-me dizer da violência do sol
lambendo as bordas das nuvens.
Falar de minha alma sedenta de luz
e rasgar a pele das páginas,
maculando o branco resoluto.

Tudo é desejo e cintilância.
E a vida corre macia
como tua língua,
nas minhas coxas.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Negridianos

             Para Cuti, Limeira e Guellwaar Adún

Há uma linha invisível,
lusco-fusco furioso dividindo as correntezas.
Algo que distingue meu pretume de sua carne alva
num mapa onde não tenho territórios.

Minha negritude caminha nos sobejos,
nos opacos por onde sua luz não anda,
e a linha se impõe poderosa,
oprimindo minha alma negra,
crespa de dobras.

Há um negridiano meridiando nossas vidas,
ceifando-as no meio incerto,
a linha é invisível mesmo:
mas nas costas ardem,
em trilhos rubros,
a rota-lâmina destas linhas absurdas que desenhas
enquanto eu não as enxergo.